8 de março e os silêncios sobre a condição das mulheres
Gabrielle Adabo/ComCiencia/Labjor/Dicyt - Há sessenta e cinco anos, o livro O segundo sexo, publicado pela filósofa Simone de Beauvoir, trazia a frase que se tornaria celébre: “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”. O ser mulher, portanto, estaria relacionado à construção de significados que cada sociedade faz sobre a diferença sexual. Mas será que hoje, na época da internet e das redes sociais, a imagem que se cria da mulher ainda está relacionada a estereótipos? Uma análise das comemorações do “Dia Internacional da Mulher”, celebrado no dia oito de março, pode fornecer algumas dicas. De acordo com a análise da pesquisadora e coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Iara Beleli, as manifestações a respeito da data na mídia - em notícias e reportagens, anúncios publicitários, discursos do governo e publicações em redes sociais e blogs- reforçam a visão da mulher ligada ao ideal de feminino e marcam, sobretudo, pelo silêncio quanto a temáticas como violência contra as mulheres e aborto.
“Há quase quarenta anos o Dia Internacional da Mulher é celebrado na grande mídia. Algumas pautas, de fato, remetem aos motes dos movimentos feministas de meados do século XX. No entanto, a celebração da data, incorporada pelo mercado, reitera recorrentemente modos de 'ser mulher', justapondo aos produtos características que informam, para não dizer impõem, um tipo de feminilidade a ser seguido, na maioria das vezes, reforçando ideias de meiguice e doçura como características inatas às pessoas do sexo feminino”, afirma Beleli.
Na data, jornais, revistas e sites de notícias aproveitaram a efeméride para pautar as matérias sobre o tema. Houve registros das manifestações que ocorreram em cidades brasileiras e em outros países pela igualdade de direitos entre homens e mulheres, matérias sobre saúde da mulher, as “clássicas” reportagens sobre a mulher no mercado de trabalho, em funções tipicamente masculinas, e algumas poucas matérias e artigos que abordaram a questão da violência contra a mulher, a igualdade entre os sexos e indagaram sobre o caráter comemorativo da data.
O questionamento ao significado que é atribuído à data é visível, principalmente, em blogs que se autointitulam feministas, como na postagem da blogueira Lola Aronovich, autora do blog Escreva Lola Escreva, feita no 8 de março. (pode ser lida na íntegra aqui). “Hoje é Dia Internacional da Mulher, um dia importante, de luta e de conscientização, e também de comemoração de conquistas. Infelizmente, é um dia que, já faz alguns anos, o capitalismo tenta tomar para si. Se depender do senso comum e do mercado publicitário, virou um dia de "parabéns por ser mulher". Então vemos todas aquelas "homenagens" aquelas que poderíamos muito bem viver sem”, escreve.
A blogueira analisa, inclusive, o papel da mídia na celebração da data. “Parte da mídia aproveita a data para falar mal do feminismo, mas cada vez mais há matérias que abordam a desigualdade e os preconceitos contra mulheres. E, por mais que existam mil e um encontros do tipo "derrote a celulite localizada", também há muitas palestras feministas em empresas, faculdades e escolas de ensino médio. Mas é uma batalha. Todo ano é uma batalha. E, como a gente bem sabe, a luta é todo dia”.
Também questionada por muitas blogueiras e por usuários das redes sociais, uma propaganda da loja Riachuelo, produzida para ser veiculada na televisão, mostrava uma mulher branca como protagonista enquanto as mãos de uma mulher negra entregam a ela presentes. Além disso, houve o discurso da presidente Dilma Rousseff, que exaltou as conquistas das mulheres brasileiras, com base em dados recolhidos de programas realizados pelo governo. Há menção à necessidade de redução da violência contra a mulher, mas é breve e também vinculada a um programa governamental.
“Logo após o pronunciamento da Presidenta Dilma Roussef, em rede nacional, para comemorar a data, pipocaram críticas nas redes sociais ao tom excessivo do discurso que apontava para o engrandecimento, empoderamento, das mulheres. É inquestionável a atenção às políticas sociais dos últimos governantes do Brasil, mas chocou o silenciamento sobre a questão do aborto, pauta também dos últimos quarenta anos de vários grupos feministas”, analisa Beleli.
Durante o mês de março, o assédio sexual a mulheres no transporte público se tornou notícia. A polêmica começou na primeira quinzena do mês com a denúncia de vídeos, comunidades em redes sociais e sites dos chamados “encoxadores”: homens que expõem em vídeos o assédio sexual cometido contra mulheres. Nos dias subsequentes foram noticiadas denúncias de vítimas de assédio sexual no transporte público, prisões de suspeitos pela polícia e a propaganda radiofônica do metrô de São Paulo que foi acusada de estimular o assédio sexual contra as mulheres.
No dia 27 de março, pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), com base em dados do Ministério da Saúde, mostrou que 88,5% das vítimas de estupro no Brasil são mulheres, 50,7% menores de 13 anos e 51% de cor preta ou parda. Na mesma data foi divulgado o estudo “Tolerância social à violência contra as mulheres”, também do Ipea, que apontou que para 58,5% dos entrevistados (66% da amostragem eram mulheres), o comportamento das mulheres influencia nos estupros.
Os resultados dessas pesquisas foram publicados em sites, jornais e revistas e geraram reações, principalmente nas redes sociais. A campanha chamada de “Eu não mereço ser estuprada”, realizada na rede social Facebook pela jornalista Nana Queiroz, pediu que as internautas enviassem fotografias com os dizeres da campanha e recebeu manifestações de apoio, mas também ameaças.
“Também chamou a atenção a tímida menção à violência contra as mulheres - porque são mulheres - que ganhou força com a publicação da pesquisa do Ipea quase imediatamente incorporada pela mídia, pautando, inclusive, o capítulo de Em família – novela do horário nobre da ainda maior rede de televisão brasileira - cujos personagens centrais se mostravam indignados, estupefatos, com o fato de a maioria dos brasileiros culpabilizarem as próprias mulheres de serem estupradas. Também há quarenta anos, as feministas lutam contra certa moralidade que, de fato, tem consequências para os corpos das mulheres. E certamente o aborto é um tema que também passa pelas moralidades (acordos?) religiosas, quando deveria ser pautado como uma questão de saúde pública”, completa Beleli.