Ciencia Brasil Campinas, São Paulo, Jueves, 30 de mayo de 2013 a las 10:38

Formação profissional de artistas: além dos números, experiências vividas

Entrevistas relatam trajetórias singulares, que informam o papel das famílias, as relações sociais de classe e de gênero e o papel do Estado na institucionalização da formação e na legitimação de certificações

Liliana Rolfsen Petrilli Segnini/ComCiência/Labjor/DICYT - O objetivo deste texto é analisar um dos aspectos relativos ao processo de formação profissional de artistas, grupo de trabalhadores que se distingue em relação aos ocupados no Brasil e na França pela elevada escolaridade. Como se formam? Por meio de quais instituições? Qual é a relevância do Estado nesse processo? O que informam as estatísticas? Quais as experiências vividas relatadas nas entrevistas? O que os diferencia enquanto dois grupos no campo da cultura? E quanto às especificidades de cada país? As relações sociais de classe e de gênero informam diferenciações e/ou desigualdades, no processo de formação? Compreendê-las, novamente nos remete às singularidades de cada campo – dança e música – analisadas em vários artigos que resultam de um período de mais de dez anos de pesquisa.

 

Formação em música e dança

“O melhor diploma é o último concerto”
Alex Klein, oboé, 2006

 

Heterogeneidade. Esta é a palavra síntese dos muitos caminhos que possibilitam a formação de um músico ou bailarino, frequentemente analisada sob o equivocado registro de vocação ou dom. Nossa pesquisa recuperou diferenciados e árduos processos de formação, os quais não são interrompidos jamais, sob o risco de o artista perder a possibilidade de continuar a exercer a profissão. As entrevistas relatam trajetórias singulares, que informam o papel das famílias, as relações sociais de classe e de gênero, migrações internacionais no contexto de mudanças políticas num mundo globalizado. Expressam também o papel do Estado na institucionalização da formação do artista, por meio de conservatórios e a criação de cursos de ensino superior, sobretudo nas universidades públicas, bem como o seu papel de legitimador das certificações profissionais por meio dos sindicatos e ordens profissionais. Entre tantas formas heterogêneas de formação, uma só voz coletiva afirma dois aspectos: a relevância do mestre – o artista formador, nem sempre um professor; a formação permanente.

 

Você vê muita gente que começa muito, muito bem, chega a ter o que seria o auge dentro da idade em que ele está e que a partir deste momento começa a decair, isso acontece muito também. O que o Alex Klein menciona é o fato de que você não pode deixar isso acontecer. Você tem que a cada concerto, a cada apresentação, se avaliar você tem que ser capaz de honestamente reconhecer o que está bom... é bom também saber o que é bom, onde está faltando ainda alguma coisa, onde você pode ainda melhorar e ai você pode continuar o seu trabalho gradativamente... não existe um ponto final para isso, né? Até o fim da sua vida se for o caso... (Antonio Meneses, violoncelista, 07/07)

 

O objetivo deste texto é analisar somente um dos aspectos presentes no relatório de pesquisa (2007) que informam os múltiplos processos que possibilitam a formação de um músico e ou bailarino3. Trata-se da contradição presente na crescente escolarização dos músicos e bailarinos no ensino superior observada por meio das estatísticas nacionais, reiterada nas entrevistas. No entanto, a relevância do diploma é questionada pelos próprios artistas na realização de seus trabalhos.

 

Diploma? Questionamentos à relevância do diploma na formação do artista

Músicos e bailarinos relativizam a relevância de um diploma frente à exigência de mostrar competência nas performances em audições, concertos, apresentações. Eles reafirmam, assim, o questionamento da relevância da formação profissional pela instituição escola (e ao diploma que outorga) implícita na fala do reconhecido oboísta brasileiro, Alex Klein.

 

Os processos seletivos, no Brasil ou na França, para ingresso em orquestras ou companhias de dança, demandam a comprovação do domínio do desempenho artístico, quer seja por meio de audições, frequentemente antecedidas por gravações em áudio ou imagens. Os teatros pesquisados, nos dois países, não solicitam comprovação de diploma em música ou dança, assim como os concorridos concursos internacionais. É o resultado do trabalho do artista que é avaliado sempre, em qualquer momento de sua carreira.

 

O Concurso Internacional de Piano Villa-Lobos, realizado em 2006 na Sala São Paulo é tomado como um exemplo da não exigência de diplomas, mas da comprovação de competência artística e “da linhagem” dos mestres envolvidos na formação do candidato. A Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) e o Ministério das Relações Exteriores o organizaram, sob a direção do regente John Neschling. Por meio da Lei de Incentivo à Cultura, esse evento contou com o patrocínio do Grupo Andrade Gutierrez, Grupo Telemar e Companhia de Concessões Rodoviárias.

 

O júri foi composto por pianistas renomados e reconhecidos internacionalmente, presididos pelo brasileiro Nelson Freire. Entre os vinte candidatos selecionados para a fase final, aberta ao público, onze mulheres e nove homens, com idade entre dezesseis e trinta e seis anos. O mais jovem de todos os concorrentes, Chun Wang, ainda estudante na Escola de Música do Conservatório Central de Música de Pequim, foi selecionado para receber o prêmio em primeiro lugar.

 

Wang, além do prêmio em dinheiro, gravação de cd, contratos de concertos, recebeu uma bolsa de estudos para se aprimorar no Conservatoire National de Musique de Paris, possivelmente para vir a ser aluno do 4º pianista colocado no concurso. Idade, formação profissional, experiência, aspectos valorizados em outras carreiras, são colocadas sob questionamento face à relevância do desempenho no momento do concurso. Como se forma um artista? Pergunta objetiva, resposta complexa.

 

A pesquisa realizada nas audições de seleção para instrumentistas na Opera National de Paris e no Theatro Municipal de São Paulo evidencia que também nesse difícil processo não é exigido escolaridade e diplomas, só conhecimento mensurado nas audições. No entanto, em ambas as orquestras, a formação superior em música predomina nos currículos dos músicos.

 

A criação de uma rede de excelência, de contatos que facilitam acesso ao trabalho considerado de qualidade, conquistado após a superação de muitos obstáculos é reiterada nas entrevistas realizadas nas duas orquestras.

 

O papel do Estado na formação e certificação profissional do artista

Na França, desde o século XIX, cabe ao Estado republicano garantir a todos a formação profissional de músicos e bailarinos. Ravet elaborou a “pirâmide da formação” em música e esta pode também ser adaptada à dança, a estrutura se assemelha naquele país.


No entanto, as entrevistas afirmam que além da rigorosa formação, esse trajeto possibilita a criação de uma rede de excelência, de contatos que facilitam acesso ao trabalho considerado de qualidade.

 

De toda maneira, tudo se passa por meio do concurso. É angustiante porque na França esta é a “via real”. Se não passamos pelo Conservatório Superior de Música, o concurso será mais difícil. Eu acredito que 95% dos músicos da Ópera de Paris passaram pelo CNSM! (risos) Assim, se não passamos pelo CNSM, existem poucas chances de fazer uma carreira. Eu não acredito que o ensino lá seja realmente maravilhoso, que sejamos obrigados a passar por lá. Este não é um problema de ensino, é um problema de construção de redes, na realidade. É uma forma de entrar em um contexto, em um campo. É entrar num grupo, conhecer gente que tem autoconfiança porque toca bem. (... ) Os professores não são melhores do que em outros lugares. Não é isto. É a possibilidade de construir uma rede que estimula o próprio grupo ... É a emulação que nasce por estar entre pessoas que interpretam bem. É mais psicológico, eu acredito, do que o ensino em si. (Flautista, Ópera de Paris, 2003).

 

No relato dessa flautista sobre sua trajetória de formação profissional, são evidenciados alguns aspectos relevantes para a compreensão da exigência de um longo percurso marcado pela realização de audições em concursos competitivos, disciplina nos estudos individuais e coletivos, respeito à hierarquia. Para Elias e Scotson, existe um preço social e individual na conquista do pertencimento a grupos considerados de elite. “A participação à superioridade de um grupo e ao carisma coletivo é, por assim dizer, a recompensa da submissão às normas específicas deste grupo (...) A gratificação que cada um tira de sua participação no carisma coletivo compensa o sacrifício pessoal da submissão às normas coletivas”4 (tradução nossa).

 

No Brasil, a participação em grupos de música e dança considerados “de elite” nos seus respectivos contextos, encontram no ensino público superior um papel recente e diferenciado em relação ao conjunto dos cursos no país.

 

As vagas no ensino superior no Brasil registraram crescimento de 250%, conforme dados do próprio MEC referentes aos anos 1990. No entanto, esta não foi a situação observada em música e dança; ao contrário, cursos implantados nesse período encontram no Estado o principal agente. Esta situação permanece até o presente e expressa uma das formas de estímulo estatal a um campo econômico em expansão.

 

O Censo do Ensino Superior, divulgado pelo Ministério da Educação, registra ao longo da década de 1990, cerca de 4.000 alunos e alunas matriculados no nível superior de dança no Brasil. As matrículas, apesar do número ainda restrito, tendo em vista a dimensão geográfica e populacional do Brasil, praticamente duplicaram no período compreendido entre 1991 e 1999, ou seja, de 352 estudantes em dança, em 1991, para 658, em 1999. O ensino superior público contribuiu de forma mais contundente para esse crescimento, representando 72% das matrículas no período analisado. Na região Sudeste está concentrado o maior número de vagas. As mulheres predominam nesse curso, ao contrário do que ocorre em música. Analisando as matrículas do curso superior de dança, pode-se afirmar que a futura bailarina é do sexo feminino, uma vez que em cada dez alunos, nove são mulheres e, entre elas, 72% fizeram sua formação acadêmica em uma universidade pública.


Na música é observado movimento similar, ainda mais intenso. Em 1991, das 3.324 matrículas no ensino superior em música, 2.527 estavam em universidades públicas; em 1999, dos estudantes de música no país, cerca de 3.500 frequentavam o ensino público. A região Sudeste do país concentra o maior número de vagas.

 

Assim como na dança, a música reproduz, por meio do maior número de matrículas, a situação do mercado de trabalho nesse campo, quer seja pela concentração do número de espetáculos ou do volume de financiamento para tanto, com o apoio das múltiplas leis de isenção fiscal nos planos federal, estadual e municipal.


Considerando os dados acima, é possível afirmar que a música continuará a constituir um espaço de trabalho masculino, tal como já é no mercado de trabalho francês e brasileiro, no presente. As porcentagens de mulheres musicistas, nos dois países, se aproximam – 30% –, apesar das diferenças históricas no acesso à formação profissional.

 

Profissionais da música, segundo o sexo

O emprego protegido pela legislação trabalhista, também denominado trabalho formal ou “com carteira”, frequentemente encontrado em orquestras (corpos estáveis) ou na docência, representa um restrito grupo entre os profissionais da arte e do espetáculo, inclusive músicos. Nesse caso, a porcentagem de mulheres é ainda mais reduzida – 23%.

 

Emprego para profissionais da música, segundo o sexo

 

No Theatro Municipal de São Paulo, o diploma de ensino superior em música é também pouco valorizado. Porém, um paradoxo é observado mesmo considerando a não obrigatoriedade e a não exigência do curso superior para o exercício da profissão do músico: dos 80 currículos dos músicos da Orquestra Sinfônica do Municipal de São Paulo, 59 informaram que concluíram o curso superior em música (43 homens e 16 mulheres), 19 não concluíram (17 homens e 2 mulheres), só dois não informaram. A não obrigatoriedade não significa que essa formação não faça parte do currículo do maior número desses músicos; ao contrário, faz-se necessário entender as razões que os levam à não valorização desse diploma enquanto legitimador de conhecimentos que os habilita na concretização de seus trabalhos.

 

“(...) sabe, na música não é importante fazer faculdade, porque se você for prestar um concurso não interessa que você tenha estudado em Israel, na Rússia..., isso não é importante, o importante é você chegar e saber tocar; na música não tem muito isso de que você precisa apresentar um diploma porque aquele diploma vai dizer que você é músico” (Viola, músico OSM, 26/4/2004).

 

“(...) e aí era complicado, o desânimo de chegar lá e ver aquela universidade..., eu já não tinha uma estrutura, uma formação boa, eu imagino que eu deveria ter uma estrutura muito melhor para poder estar cursando a universidade. Aí eu entro lá e vejo que lá também ninguém tem, uma coisa completamente absurda assim, desestruturado, aí eu fiquei num desânimo total” (Contrabaixo, músico OSM, 31/3/2004).

 

No entanto, esse quadro tem historicamente se modificado. Os espaços considerados com maior legitimidade para a formação de músicos são os conservatórios, as escolas de música e aulas particulares. Mesmo assim, o papel do ensino superior assume outras características a partir da reforma do ensino superior ocorrida em 1968, a partir da qual os conservatórios que não se configurassem de acordo com a Lei 55405, não mais poderiam emitir diplomas que autorizassem seus formandos ao exercício da docência (Pichoneri, 2011).

 

(...) para aqueles que frequentaram as aulas particulares até a década de 1960, elas representaram o estágio mais elevado de aprimoramento; para os que realizaram a partir dessa década, elas tendiam a ser uma etapa entre os estudos de conservatório e o ingresso em nível superior. Isto porque, após a reforma, os egressos de curso técnico de conservatório passaram a almejar estudos que diplomassem ou titulassem, de modo a atender à nova legislação e apresentar condições de obter um lugar no mercado de trabalho (Ibid., 2004:145).

 

Entretanto, não se pode afirmar que o curso superior seja condição sine qua non para o exercício da docência, mesmo quando ele é realizado dentro do próprio espaço do ensino superior.

 

(...) eu lembro, quando eu ingressei na Unesp, que eu vi alunos de outras escolas que nunca tinham tido aula, por exemplo, de teoria ... os intervalos e a harmonia, enfim, que era coisa básica e que os professores têm que ensinar de novo; mas eu acho que eu fui bem privilegiada de ter estudado lá (no conservatório) (...) não cheguei a concluir (a graduação) (...) nunca fez falta, inclusive agora eu estou integrando o corpo docente da Faculdade Cantareira (...) mesmo sem o diploma. (Violino, músico OSM, 31/08/2004).

 

É possível também relacionar a procura pelo ensino superior como estratégia de inserção no mercado de trabalho como docentes; dessa forma, os músicos buscam não somente a graduação, mas os cursos de pós-graduação (especialização, mestrado e doutorado, este último em número bastante reduzido), condição esta cada vez mais exigida nas universidades. No entanto, o reconhecimento do “notório saber” tem ainda sido suficiente em muitos casos (Arruda, 2012).

 

Neste texto foi possível problematizar a relação entre o crescimento da participação do ensino superior na formação de artistas, especialmente músicos, e a desvalorização da importância do curso superior observada em processos seletivos para orquestras, em concurso no campo da música e nas entrevistas realizadas. A performance no momento da audição é avaliada, reiterando a afirmação do obeísta Alex Klein, em entrevista realizada no Festival de Campos do Jordão, em 2006: “O melhor diploma é o último concerto”. No entanto, a relevância da construção de uma rede de profissionais que se apóiam mutuamente, a partir do pertencimento ao mesmo processo de formação profissional, tal como evidenciado pela flautista na França, pode ser reiterado no Brasil.